A única coisa que se sabia era que o dia seguinte
estava lá e nem sempre começava geométrico depois da última pancada da meia-noite e era como que não compassos, não réguas e esquadros, transferidor e o tempo, por isso livre e sem linhas
sempre me fez
confusão que o tempo em alguns relógios se anunciasse em pancadas, em sons sortidos como as caixinhas de bolachas e
no entanto o tempo é apenas silêncio
no relógio velho plantado com a sua sombra na parede ao fundo da sala
e por baixo dele o aparador cheio de vidas em retratos de entes já mortos, todos muito admirados pelo tempo
o barulho dos
relógios serve para nos lembrar que o tempo existe e se sempre em silêncio, não
damos por ele e podêmo-lo calcar sem que ele profira um queixume, um lamento, um som que seja
todos a preto e branco, muito quietos, alguns solenes e compenetrados na lente que se
lhes aponta.
A Tia Arminda que vendia peixe com uma cesta à cabeça, sempre num equilíbrio
de acrobatas, as mãos na cintura enquanto a língua disparava pregões soprados
numa violência de perdigotos e podia jurar-se que a sua foto cheira a carapau
fresco
- Fresquinho.
Ainda aos saltos e com restos de areia, tem de lavar, senhora!
e no entanto apenas um retrato ao lado de outros numa sala de paredes
amarelecidas pelos anos e pela lareira que sempre fumou mal e nos retratos, conversas
- Estou farta de
te dizer que havias de chamar o limpa-chaminés para limpar isto, Adérito, fica
tudo defumado. E o construtor não fez a chaminé bem feita. E isto faz mal à
saúde, porque se apega aos pulmões e nem se respira bem.
enquanto Adérito, mudo no retrato de 20 anos, sem olhar para a Arminda,
ambos também já a correr para o amarelado e ele de olhar fixo em nenhures
- Ele sempre teve
aquela expressão vazia...Às vezes até irritava!
ou talvez preso nos ponteiros rendilhados do relógio da sala enquanto o dito, teimoso, batia as horas numa obstinação de
bode velho e a noite
tratava de embrulhar os vidros das janelas num papel escuro e nos retratos por baixo do relógio, de novo o silêncio por dentro do outro silêncio das coisas paradas e sombras. Não amarelos, não o fumo da chaminé que nunca fumou, não o cheiro a carapau, não o Adérito de expressão vazia e parada que às vezes até irritava
- Se calhar morremos derivado ao fumo, Adérito, eu bem te avisei!
o dono da obra que nunca veio porque não chamado, o limpa-chaminés só desejado e a única coisa que se sabia era que o dia seguinte estava lá e sempre atrás dele, as pancadas do relógio que em segredo se baixava e tentava apanhar por baixo das mesas e das cadeiras da sala parada, as almas do tempo!
4 comentários:
Mais um texto fabuloso, meu caro!
Parabéns!
Fabuloso?
Onde?
É mais um daqueles textos do A. Luís que mesmo que tivesse 500 linhas não dizia nada de jeito.
Apenas li hoje. Gostar? Gosto sempre!
Só hoje li. Gostar? Gosto sempre!
Abraço.
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