quarta-feira, 26 de setembro de 2012

AS ALMAS DO TEMPO



A única coisa que se sabia era que o dia seguinte estava lá e nem sempre começava geométrico depois da última pancada da meia-noite e era como que não compassos, não réguas e esquadros, transferidor e o tempo, por isso livre e sem linhas
sempre me fez confusão que o tempo em alguns relógios se anunciasse em pancadas,  em sons sortidos como as caixinhas de bolachas e no entanto o tempo é apenas silêncio
no relógio velho plantado com a sua sombra na parede ao fundo da sala e por baixo dele o aparador cheio de vidas em retratos de entes já mortos, todos muito admirados pelo tempo
o barulho dos relógios serve para nos lembrar que o tempo existe e se sempre em silêncio, não damos por ele e podêmo-lo calcar sem que ele profira um queixume, um lamento, um som que seja
todos a preto e branco, muito quietos, alguns solenes e compenetrados na lente que se lhes aponta. 
         A Tia Arminda que vendia peixe com uma cesta à cabeça, sempre num equilíbrio de acrobatas, as mãos na cintura enquanto a língua disparava pregões soprados numa violência de perdigotos e podia jurar-se que a sua foto cheira a carapau fresco
                - Fresquinho. Ainda aos saltos e com restos de areia, tem de lavar, senhora!
e no entanto apenas um retrato ao lado de outros numa sala de paredes amarelecidas pelos anos e pela lareira que sempre fumou mal e nos retratos, conversas
- Estou farta de te dizer que havias de chamar o limpa-chaminés para limpar isto, Adérito, fica tudo defumado. E o construtor não fez a chaminé bem feita. E isto faz mal à saúde, porque se apega aos pulmões e nem se respira bem.
enquanto Adérito, mudo no retrato de 20 anos, sem olhar para a Arminda, ambos também já a correr para o amarelado e ele de olhar fixo em nenhures
- Ele sempre teve aquela expressão vazia...Às vezes até irritava!
ou talvez preso nos ponteiros rendilhados do relógio da sala enquanto o dito, teimoso, batia as horas numa obstinação de bode velho e a noite tratava de embrulhar os vidros das janelas num papel escuro e nos retratos por baixo do relógio, de novo o silêncio por dentro do outro silêncio das coisas paradas e sombras. Não amarelos, não o fumo da chaminé que nunca fumou, não o cheiro a carapau, não o Adérito de expressão vazia e parada que às vezes até irritava
            - Se calhar morremos derivado ao fumo, Adérito, eu bem te avisei!
o dono da obra que nunca veio porque não chamado, o limpa-chaminés só desejado e a única coisa que se sabia era que o dia seguinte estava lá e sempre atrás dele, as pancadas do relógio que em segredo se baixava e tentava apanhar por baixo das mesas e das cadeiras da sala parada, as almas do tempo!
                 

4 comentários:

Anónimo disse...

Mais um texto fabuloso, meu caro!
Parabéns!

Anónimo disse...

Fabuloso?
Onde?
É mais um daqueles textos do A. Luís que mesmo que tivesse 500 linhas não dizia nada de jeito.

Anónimo disse...

Apenas li hoje. Gostar? Gosto sempre!

Anónimo disse...

Só hoje li. Gostar? Gosto sempre!
Abraço.

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