segunda-feira, 5 de março de 2012

CRÓNICA VALE DE ANA JUSTA

O lugar está lá.
Poucas casas, o silêncio agarrado às pedras, os eucaliptos a fazerem sombra sobre o casario apoucado, o céu na mesma secura de semanas, os corvos a cruzarem as encostas, os cães que ladram às sombras porque não a gente,
     que gente?
gatos ao sol a ronronar preguiças e sentada num degrau da pequena escada da sua casa, Ana.
Ana é uma mulher em que cada ruga conta uma história e a sua cara não uma cara, mas um livro de contos, com as páginas cheias de letras e imagens, não números, não delírios mas memórias, dores e choros, alguns sorrisos e agora, no degrau frio da escada, o vazio arrefecido da vida.
Dentro da cozinha a velha balança onde sempre pesou as suas decisões, justas como o nome do vale que habita, sendo que em vez de justiça, a vida acabou por lhe reservar apenas silêncio, solidão
     os filhos longe e esquecidos das raízes
os gatos que se enrolam nas suas pernas esperando sons e toques, as suas mãos sobre os joelhos, o olhar preso em lado nenhum e pela estrada nem um carro, apenas ervas secas sopradas pelo vento, as oliveiras não podadas, a azeitona a esperar mãos e varas que não aparecem, as hortas sem água e sem gente e nos eucaliptos, por eles dentro, apenas o trovão das motos,
     não cavalos, carros de bois ou burros com carroças
motos que passam depressa e em cima delas capacetes e fardas de cores e lama ou pó, depois as motos longe e a seguir a elas outra vez o silêncio e as mãos de Ana ainda cruzadas sobre o joelho à espera...
Dali a pouco um passeio de passos pequenos e curtos, o saco plástico numa mão por via do apito do padeiro que surge no ângulo da curva da estrada e depois no largo
     e outras Anas acompanhadas das suas sombras
e a seguir o carro do padeiro já longe e novamente o silêncio e os corvos nas encostas a crucitar as ventanias que sopram o vale.
Em casa  os chinelos gastos nos pés e na televisão um senhor de óculos a gritar coisas e outras Anas sentadas na plateia a juntar as mãos e em palmas a sorrir porque mandadas e na cadeira de pau da pequena mesa redonda da cozinha com panelas penduradas
     como sinos
Ana de olhos fixos na balança
     não na televisão porque ela está ali apenas porque tem as vozes de carne e osso que lhe faltam em casa
onde sempre se achou justa porque trabalhadora, humilde, honesta e dedicada e hoje apenas só, no meio do vale de poucas casas e outras Anas e de todo o silêncio da sua solidão!
(c) António Luís

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro Luís, acha mesmo que este tipo de escrita tem a ver com o homem das tabernas?
Aprenda com os seus colegas. Seja menos piegas!

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