quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A MULHER QUE NÃO ESPERA A ÚLTIMA PÉTALA DE ROSA


É sempre a mesma coisa. De manhã levanto-me, calço os chinelos, visto uma saia e uma blusa antiga que o sábado não obriga a atavios e ele permanece na cama à espera que a mesa do pequeno almoço se revista. A espaços ressona
     já lhe disse para ir ao médico a ver se resolve o problema mas ele diz que a mulher só tem é que aguentar
fala comigo sem me olhar e interrogo-me se se lembra da cor dos meus olhos e passo muitas noites a dormir no intervalo dos seus silêncios entre os ressonares, levanto-me, passo pelo corredor e nele parece que consigo ver  os meus sonhos espalhados pelo chão e não pétalas de rosa que sempre sonhei que ele me pusesse, mas os sonhos a esconderem-se, abrindo e fechando as portas e fugindo de mim.
Entro na cozinha e há cheiros do jantar do dia anterior que não se cheiram com o nariz mas com o estômago e a casa mergulhada ainda em silêncio tirando os roncos dele a sair do quarto e de chinelos caminharem até mim, a minha filha dorme no quarto dela a alinhavar a juventude pelos cantos e paredes e eu aqui, sozinha, na minha geografia e sendo sábado, já sei a ementa que me espera. A de todos os sábados, limpar a casa, cansar-me de estar cansada, pensar o almoço e o jantar, e ele tantas vezes sem oferecer ajuda dizendo que a semana foi dura e que tem de descansar, esborregado no sofá, exercitando o comando da televisão, pedindo uma cerveja e depois outra e se não a filha eu que lha vou levar e nem um obrigado
     às vezes tenta apalpar-me o rabo antecipando convites para festa mais logo mas já lhe conheço os movimentos iguais há tantos anos que seria capaz de os arrumar num catálogo
e sem dizer um som, lá o deixo no seu descanso enquanto desconfio que me acha gorda dado que querendo apalpar-me o parece fazer como descarga de consciência à conta das cervejas que lhe levo ao sofá e nós mulheres percebemos o ritmo dos gestos deles e as palavras que escondem.
De maneira que logo que posso saio à rua, passo na casa da Fernanda, divorciada há 2 anos que o marido dela gostava de lhe encostar o as mãos e sempre me diz que
     - sabes, Gabriela, quando casei com o Carlos o que ele tinha na ponta do seu braço direito era o coração. Os anos passaram, o coração recuou e o punho tomou o lugar e deixou de me oferecer o seu coração para me acariciar de punho fechado!
e falo com ela sobre umas rosas que tenho no canteiro ao lado da porta da entrada para onde ele já chegou a mijar quando chega a casa das cartas com os amigos, com a bexiga a babar de cerveja e conto as pétalas Fernanda, juro que conto e digo-te que cada vez são menos e juro-te que não as deixarei chegar ao fim porque já não vou estar em casa para a contar a última.

3 comentários:

Anónimo disse...

O machismo perfeito personalizado numa pessoa (homem) igual a tantos outros.
Esta escrita devia ser levada ao pormenor e estendida sobre a carpete do chão e arrumada como quem monta um puzle.
De certeza que nasceria a obra que muitos sonham e não conseguem. Parabéns A. Luís.
Nem só de humor vive a taberna.

Anónimo disse...

Excelente texto sobre uma realidade que muitos ainda aceitam sem questionar.Parabéns!

Anónimo disse...

Muito bem sr. António Luís!
Aconselho-o a deixar as politiquices de Penacova e a brindar-nos mais com textos espetaculares como este!
Obrigado!

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